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Esse blog tem intuito de difundir o batuque do Rio Grande do Sul. A base do blog é as pesquisar feitas por seu fundador, Rodrigo Heck. Cujo é Babalorixá da nação de Cabinda, e também cacique de Umbanda e Quimbandeiro. Os textos aqui publicados têm referencias bibliográficas de livros, internet e textos obtidos nos fóruns que o autor participa. Esse blog é aberto à discussão, e pedimos a colaboração de todos os amigos que visitarem que deixem seus comentários, sugestões e criticas, para que possamos melhor a cada dia nosso trabalho.

Jogo de búzios e cartas com hora marcada

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segunda-feira, 16 de março de 2015

A Tradição do Bará do Mercado traz os relatos de 7 religiosos de matriz africana sobre o fundamento afro-religioso chamado O Bará do Mercado Público, a partir dos percursos e experiências urbanas desses negros na cidade de Porto Alegre.


Imagine que as pedras trazem o fogo em seus ventres. O fogo é gestado também na essência da madeira, ganha vida na partição do metal. O oxigênio que agora move-se em filetes invisíveis sob as minhas digitais, na pressão das teclas desse computador, incidindo e fluindo ao meu pulmão e do teu, também é mãe e sangue do fogo. Pairando no céu, encrespado em rebuliços eternos, revolvendo-se em bumbares enraivecidos, fantásticos e descomunais, reina sobre nós o fogo em seu paroxismo de luz. Difícil de compreender, fascinante, amedrontador, mágico, poético, vital e extremamente destrutivo é o fogo.
No panteão africano, Exu é a divindade mais controversa. Bom ou mau, justo ou cínico, anjo ou libertino: não existe consenso quanto ao seu caráter. Exu viveria no riso e no escárnio, no gozo e nos gostos, na cólera, no trago, na balbúrdia, na festa burlesca do homem. Zelador da verdade e das encruzilhadas, por baixo e por cima, Exu poda asa, raspa chifre, trinca máscara, fecha caminho, abre picada, sempre de porrete em riste, sarrando a morte e sua bunda magra. Exu é o mensageiro dos Orixás, que são as emanações da natureza – palavra empregada em seu sentido primal e gerador. Exu, o sentinela, o comunicador, é o operador do mistério entre o céu e a terra, a magia do mundo. Exu é a dinâmica da perenidade, é o princípio por fim, é a incoerência, o movimento, o giro do vento, é o garrancho na linha torta, é a essência inescrutável dos seres, enfim, desvelada. Difícil de compreender, fascinante, amedrontador. Mágico.
Aluvaiá, Njila, Elegbara, Lonan, Bongbogira, essa entidade é conhecida por diferentes nomenclaturas nas vertentes surgidas das crenças tribais do continente africano. No sul, terra do Batuque, ela atende por Bará, o insolente filho de Iemanjá, irmão de Ogum e de Oxossi, aquele a quem se deve agradar antes de qualquer outro, sob pena de sofrer com sua revolta ou picardia. É assim no fundamento que resistiu aos porões dos navios, aos grilhões e açoites, à perseguição e ao entrave do preconceito, para consolidar-se em refúgio e identidade de um povo hoje multicolorido.
Pelo último censo do IBGE, o Rio Grande do Sul é o estado com mais adeptos declarados das religiões de matriz africana – o Candomblé, a Umbanda, a Quimbanda. São quase 1,5% da população, mais do que o segundo e o terceiro colocados somados (Rio de Janeiro, 0,9%, e Bahia, 0,3%). Na prática, a audiência dos cultos pode ser muito maior: estima-se em 70 mil o número de centros com essa orientação espalhados nessa província de pendores europeus. Na Capital, o Batuque e o seu polêmico deus podem ser responsáveis por uma espécie de história secreta, sedimentada nos subterrâneos da cidade.
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Foto: Vinicius Vieira/Divulgação PMPA
O Bará do Mercado
Há uma lenda urbana porto-alegrense que confere ao Mercado Público o status de santidade pagã. É uma beatificação torta que estende sua mística sobre toda a cidade e seus habitantes. Na Praça Paraíso, local onde foi erguido o centro comercial, já se vão quase 150 anos, não havia nada de misterioso: nenhum milagre foi registrado, cemitério indígena algum restou violado. Ao contrário: o lote à beira do Guaíba sacralizou-se pelo erguimento do prédio, a partir da sua existência. Reza o mito que o Mercado Público foi entregue à guarda de Exu.
O assentamento é o procedimento utilizado para aglutinar a energia do orixá em determinado lugar. Uma vez consagrado, esse ponto ganha um dono, um ente vedor, um regente. As oferendas depositadas ali mantêm viva a influência da entidade e a ligação dela com seus fieis. No fundo do mais antigo centro comercial da cidade, alguém teria plantado um Bará. As versões sobre a origem do ritual variam. Uma concede a autoria aos escravos, artífices na construção do empreendimento, como forma de proteção ao assédio dos senhores brancos e augúrio de fartura. Numa modulação improvável da mesma história, um dos escravos teria morrido durante a obra; sem disporem de meios ou local para enterrá-lo, os demais cativos o sepultaram em pé, bem no centro das fundações.
A principal voz corrente sobre a lenda indica que o Bará do Mercado foi ali colocado por Custódio Joaquim de Almeida, um príncipe africano egresso do Reino de Daomé, atual Benim, domiciliado em Porto Alegre no início do século XX.
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Nobre Negro
Tudo é impreciso, obscuro e excêntrico quando se trata da vida de Custódio Joaquim de Almeida, nascido Osuanlele Okizi Erupê, filho do Rei de Daomé. No final do século XIX, quando a Inglaterra apossou-se da Costa do Ouro, Osuanlele fugiu para o porto de São Batista de Ajudá, um entreposto erigido pela colonização portuguesa. Lá, ele adotou o nome Custódio e rumou ao Brasil após entabular um acordo com os britânicos. As condições desse acerto não são claras. A princípio, o Príncipe Custódio receberia uma subvenção vitalícia dos ingleses e jamais poderia retornar à sua terra natal.
Ninguém conhece o motivo pelo qual Custódio Joaquim de Almeida, fluente em inglês e francês, escolheu o país como exílio. Talvez tenha sido pela intensa migração de patrícios para as terras sul-americanas, ou quem sabe por indicação do Ifá, o jogo de búzios, oráculo no qual o príncipe era perito. O fato é que, depois de passar por Salvador e Rio de Janeiro, ele aportou na cidade de Rio Grande, em 1899, deslocando-se em seguida para Pelotas e Bagé. Em Pelotas, Príncipe Custódio conheceu Júlio de Castilhos, o responsável por trazê-lo a Porto Alegre, em 1901, provavelmente.
À essa época, Júlio de Castilhos debatia-se com um câncer na garganta – mazela empedernida à medicina atual, quanto mais à de cem anos atrás. Positivista, cientificista, homem de luzes e racionalidades, Castilhos entregou-se às mezinhas, aos benzimentos, à panaceia herbária, aos conjuros e tambores do negro curandeiro. O câncer foi inclemente, e o político faleceu dois anos depois de contribuir para a instalação da corte de Príncipe Custódio no casarão da Rua Lopo Gonçalves, número 498, na Cidade Baixa, próximo ao antigo Areal da Baronesa – zona ocupada eminentemente por negros, muitos ex-escravos libertos e descendentes de cativos, quase todos filiados às religiões africanas.
Tendo em Castilhos um avalista de seus sortilégios, Custódio Joaquim de Almeida criou laços com outros ícones da história gaúcha, como Borges de Medeiros, Pinheiro Machado e Getúlio Vargas: de colarinho branco, todos ‘batiam cabeça’ em seu terreiro, suplicando auxílio para lograrem sucesso nos intentos políticos, requestando a abertura das melhores rotas no espinhoso mapa do poder. Figuras de escol da sociedade porto-alegrense também eram habitués do castelo da Lopo Gonçalves, principalmente nas festas homéricas patrocinadas pelo príncipe – eventos pomposos, de sol e lua, calçados no erário que lhe era depositado com pontualidade britânica. No centenário de Custódio, em 1931, as festividades duraram três dias ininterruptos, ao som dos atabaques e das cantigas ancestrais.
Na Belle Epóque porto-alegrense, época de transformações, do reinício de lutas infindáveis do negro por seu espaço na sociedade, Príncipe Custódio ululava em trajes de gala pelos cafés e salões da Capital; criava e treinava cavalos para o seu divertimento no seleto hipódromo Moinhos de Vento; passeava pelas ruas numa carruagem tracionada por tordilhos e empreendia temporadas de veraneio em Cidreira – viajava alojado em carros arrastados por bois, com sua comitiva fixa de quase 50 pessoas, sem contar os convidados: o trajeto nunca levava menos de sete dias, pois Custódio fracionava o percurso para aderir às recepções que lhe eram oferecidas nas casas de religião.
A atuação de Príncipe Custódio para o batuque gaúcho é  considerada fundamental por muitos motivos. A corte do nobre africano não era aberta apenas à elite: Custódio franqueava curas, aconselhamentos e auxílios diversos à população carente que o demandava. Havia até um médico para atender os doentes gratuitamente. Além disso, num período marcado por perseguições, sua influência política garantia a manutenção de certo respeito e segurança à fé  dos batuqueiros – termo tornado pejorativo com o tempo.
É provável que essa ascendência aos governantes tenha ligação com a pretensa existência não só do Bará do Mercado, mas de outros seis assentamentos espalhados por Porto Alegre.
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A Capital dos 7 Exus
A encruzilhada é  a intersecção de dois caminhos, vertendo-se desse simbolismo as infinitas orientações. Ao centro de um cruzeiro, num mesmo tempo, em fluxo e refluxo, confluem e emanam todas as possibilidades. É ali que Exu trabalha, abrindo e fechando as veredas da vida e das vidas. No centro do Mercado Público, matriz e convergência das direções, caminho comum a todos nós, por onde passamos alguma ou inúmeras vezes, existe uma demarcação representando o assentamento dessa entidade, o seu trono.
Não importando a voz que o evocou, Bará regeria e guarneceria o Mercado Público. Daí viria a razão pela qual o prédio se mantém em pé, resistente a todo tipo de intempérie e turbulência: um incêndio praticamente o devastou em 1913; a enchente de 1941 o alagou quase ao teto; o fogo tornou a castigá-lo em 1976 e 1979, voltando à carga agora em 2013. Nos anos 70, a prefeitura resolveu desativá-lo e demoli-lo para ceder espaço à pavimentação de uma nova avenida e de um viaduto, mas a medida não foi levada a cabo devido à contrariedade da população – e o Mercado Público, hoje tombado pelo patrimônio histórico, manteve-se aberto à circulação de sua gente.
Por essa gente, o guardião também olharia: a energia conjurada e afixada sob o barro secular, imiscuída nas galerias basais do cruzeiro pelo qual vagam 150 mil pessoas por dia, não só zelaria pelo centro comercial, mas vibraria sobre toda a metrópole: o Bará do Mercado Público é o Exu de Porto Alegre, segundo a ancestralidade do africanismo gaúcho. Na névoa com cheiro de alecrim e charuto que paira no rastro deixado pela existência de Príncipe Custódio – falecido aos 104 anos –, esconderiam-se outros seis Barás pulverizados pela Capital.
Os orixás teriam sido alocados em sítios estratégicos e desconhecidos, com o intuito de fortalecer a cidade. Haveria dois Barás encravados nas proximidades da Igreja Nossa Senhora das Dores; um outro apararia o Palácio Piratini, sede do Governo Estadual. Quanto aos demais, poucos saberiam dar conta. Esse é um eró, um segredo, um fundamento da religião repassado à confiança de alguns escolhidos, como medida de segurança para evitar que os inimigos, os detratores das seitas, descobrissem e desfizessem a mandinga, diluindo a sua força.
Dos 7 Exus que gargalham e oferecem seus ombros para sustentar Porto Alegre, quais Atlas negros e boêmios, o mais representativo é mesmo o do Mercado Público.

Foto: Andreas Muller
Foto: Andreas Muller
O Axé do Mercado
Axé, essa expressão rebolativa, significa energia, força ou poder no dialeto iorubá, falado pela maioria das nações que compõem o Candomblé. Para os africanistas, o axé do Mercado Público é  parte ativa em praticamente todos os rituais realizados. As ervas, as velas, as imagens, os animais, as roupas, os objetos, enfim, todo o aparato adquirido no centro comercial é tido como especial, pois sai de lá impregnado com os eflúvios do Bará de Porto Alegre.
É também no Mercadão que se completa o ritual de iniciação dos adeptos do Batuque: os filhos de santo são liberados de um claustro de 21 dias e, como primeiro passeio após a reclusão, vão em visita ao Exu mais graduado da cidade. Ali, traçarão um percurso que segue uma lógica esotérica e atirarão sete moedas no centro do mercado, em oferenda de prosperidade, na junção dos vértices das bancas Central, 10, 43 e Do Holandês. Riqueza, fartura e matéria são temas tocantes à pasta de Exu. O Mercado Público não deixa de ser uma enorme e sesquicentenária despensa, que de tudo provê à cidade.
E assim seguirá, por muito tempo. Independentemente da crença, o velho armazém resistiu a outro solavanco. Graças aos bombeiros, com certeza. Pelos auspícios do Bará que o vela, sabe-se lá.
Resistência
Na década de 90, a prefeitura realizou mudanças estruturais no Mercado Público. Uma nova disposição de bancas foi desenhada, escadas rolantes passaram a lamber os níveis internos com seus degraus. À ocasião, houve uma aflição generalizada entre os fieis. Muitos temiam que as escavações previstas desarmassem o assentamento do Bará. Organizações de defesa das religiões afro se mobilizaram, reivindicaram cuidados para a manutenção de certos preceitos. O assentamento teria restado intacto.
Na nova formatação do Mercado, a pedido dos pais e mães-de-santo, a demarcação das floras – lojas especializadas em artigos religiosos – foi repensada. Desde então, existem apenas quatro floras no local: uma em cada entrada do prédio, postadas à esquerda de quem entra, à direita de quem sai. Também foi acordado que nenhum outro comércio desse ramo pode ser instalado no Mercado. Caso uma das floras seja vendida, o novo dono fica impossibilitado de alterar a atuação do negócio.
Em 2013, o Bará do Mercado tornou-se patrimônio imaterial de Porto Alegre, assim aceito pela Secretaria Municipal da Cultura, após iniciativa da ialorixá Norinha de Oxalá. Há pouco tempo foi inaugurado um mosaico em granito, nas cores vermelho e amarelo, encastoado por sete chaves. Ele está no centro do Mercado Público, numa homenagem à divindade.
Evidências
Durante as obras de repaginação do Mercado, curiosos esquadrinharam o solo em busca do Bará. Nada encontraram. Contam que o planejamento previa o reposicionamento da rede de encanamentos e a armação de uma fossa abaixo do centro do prédio. Não teria sido possível realizar o trabalho. As máquinas destinadas teriam estragado, pifado uma a uma, perdido os comandos como aviões se aproximando de um Triângulo das Bermudas de bombacha, pouco acima do Guaíba. A solução: alterou-se o projeto.
O assentamento de Bará, segundo a tradição do Batuque, pode ser feito de diversas formas. Uma pedra, chamada ocutá, tem propriedade para carregar em seu ventre a energia da entidade. A madeira ou um pedaço de ferro, igualmente. Há quem diga que Exu é uma vibração: não se vê, mas se sente. Qual o ar. Mestre Borel, bastião da ancestralidade negra de Porto Alegre, garante ser o Bará um ente mental. Coisa feita de luz, como o pensamento.




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